O corpo que flutuava (in Portuguese)
Um corpo flutuava no mar de azeite
e foi essa a maior lembrança de sua pouca juventude.
Não era uma carcaça de navio
nem era uma parte da floresta
que havia se desprendido para o mar.
Mas a sólida matéria que um dia Deus soprou
o Seu espírito.
Estava vestida de cinza como a escura borrasca do céu.
No longuíssimo cabelo se apinhavam crustáceos
de mil cores e sua pele mantinha a nitidez
de mulher cuidada com especiarias
mas não havia beleza alguma.
A face dos pescadores estava mais salgada,
feito o peixe que salgavam, pois escorria de seus olhos
indo parar em suas bocas rachadas, um líquido
que lembrava o gosto de salmoura.
E em suas cabeças o incessante clamor,
pelo poder do sangue de Jesus.
Era um corpo de mulher.
Era o que se sabia.
As vagas do mar a puxavam para uma dança
sem música.
Não aparentava madureza
nem sinal que a identificasse.
Só se ouvia meu Deus!
Várias vezes meu Deus!
Meu Deus!
Era um corpo de mulher que flutuava
e ela nem fazia parte das coisas do mar.
Era alguém em quem se procurava uma semelhança
um nome, uma vontade de morte.
O mar de almirante se fez tormenta.
Veio o céu coberto de fel dos peixes.
O velho Marçal secava sargos
no varal de bambu gigante.
Uma revolução explodia naquele ano de 64.
E meu avô à luz de uma lamparina a querosene,
sempre indagando aos netos
a sabença da história do corpo que flutuava.
Era uma história que estávamos velhos de saber
mas sempre dizíamos que não sabíamos.
E ele contava a mesma história
que há tempos se contava,
que por tempos deixava nossas cabeças fermentadas.
Era um corpo de mulher que flutuava num mar de azeite.
Essa era a maior lembrança da pouca juventude de meu avô.
Flávio de Araújo
“O corpo que flutuava” was published by Off Flip Press.
You can read and listen to the poem in English translation here.